segunda-feira, 30 de julho de 2007

SOB O DOMÍNIO DOS BANCOS

DEBATE ABERTO

Só ao final do 2º mandato de Lula se verá como é efêmero o crescimento puxado a crédito popular, sem mexer na estrutura de repartição das rendas nacionais, sem investimentos pesados do Estado e sem que seja eliminado o desemprego estrutural .
Bernardo Kucinski
Vocês já notaram que nos últimos tempos o preço à vista de geladeiras, fogões e computadores é o mesmo que o pagamento em doze vezes? Vocês tentaram recentemente pedir um desconto para pagar de uma vez só? Na maioria das vezes, não adianta. As lojas já não fazem questão de vender à vista. Á vista ou em doze prestações, "no cartão", o preço é o mesmo. Parece que o objetivo do lojista não é o de vender uma mercadoria, é o de vender uma dívida.
De repente, não há mais preço à vista para bens duráveis e semiduráveis. Todos os preços já embutem uma operação de crédito, portanto um juro. Lembrei-me de um parente que trabalhava da Fiat e me dizia, anos atrás, que o lucro da Fiat não vinha da mais valia extraída dos trabalhadores na fabricação de carros, vinha dos financiamentos para a produção e exportação dos carros. O carro tinha que ser fabricado, mas era só para garantir a transação, financeira.
A Fiat havia se tornado um grande banco sob a forma de uma indústria automobilística. O que era uma exceção parece que virou regra. Todas as grandes cadeias estão lançando seus próprios cartões de crédito. Tornaram-se bancos, sob a forma de lojas. O comércio varejista já é o maior emissor de cartões de crédito do Brasil (nota 1). São 127 milhões de cartões emitidos. A campeã é a rede C&A, com 16 milhões de cartões emitidos até junho. Algumas redes estão associadas a bancos, ente elas as Casas Bahia, associada ao Bradesco, que já emitiu 2,5 milhões de cartões.
Lojas pequenas demais para terem seu próprio cartão de crédito estão reagindo, lançando cartões de ruas. Dentro de algumas semanas, os freqüentadores da famosa Rua 25 de março, em São Paulo, vão poder ter um cartão de crédito especial, O cartão da Rua 25. Iniciativa da associação dos lojistas da rua, elaborada com a ajuda de uma financeira, a Intercap. Se já existem até cartões de shoppings, por que não de ruas de comércio?
Assim, a financeirização vai penetrando em todos os interstícios do comércio, em toda a nossa geografia urbana. Com a mesma força, penetrou no governo Lula. Passados mais de cinco anos, verifica-se que o a famosa "Carta ao Povo Brasileiro", na qual Lula se comprometeu a não mudar as regras de jogo, não foi apenas um movimento tático para desarmar o terror financeiro que nos ameaçava com o "caos". A "carta" ganhou a estatura de uma aliança duradoura, estratégica. Nenhum acordo do governo Lula com setores da sociedade, nem com os ruralistas à direita, nem como MST à esquerda, nem mesmo com a CUT revelou-se tão sólido quanto o que vem sendo mantido como os bancos.
Já são cinco anos de uma inabalável política macroeconômica de manutenção de juros exorbitantes e obtenção de "superávit primário". Sua principal conseqüência é o contingenciamento de todos os orçamentos anuais, subordinando os ministros executivos às normas restritivas do Banco Central, que tem como único objetivo impedir que o Estado gaste em qualquer coisa que não seja o pagamento de juros.
Como parte dessa aliança estratégica, o governo endossou a agenda de reformas proposta pelos bancos que incluiu, entre outros itens, a Lei da Afetação Imobiliária, o cadastro dos bons pagadores e a Nova Lei de Falência. Tudo o que os bancos queriam. E Meirelles foi mantido no comando do Banco Central, como avalista da aliança, apesar de todas as críticas à incongruência dessa política macroeconômica, não só do campo popular, mas também de tucanos que entendem de economia, como José Serra. Além de inibir o crescimento econômico, essa política obriga o Estado a tomar emprestado no mercado interno a um juro altíssimo, para manter reservas internacionais excessivas e que remuneram muito menos.
Mas Lula agradou ao grande capital, sem desagradar às classes trabalhadoras. E como foi que conseguiu isso? Através, aí sim, de uma série de importantes concessões táticas. Aumentou substancialmente o salário mínimo; estimulou a 'autoconstrução' diminuindo os impostos de insumos básicos como cimento, barateou e popularizou o crédito imobiliário, criou o Bolsa Família, dando poder de compra às famílias mais pobres, criou o Prouni, que permite aos jovens da baixa classe média estudarem em faculdades pagas. E criou o crédito popular. Em especial, o empréstimo consignado, totalmente garantido pelo pagamento do salário e proventos de aposentadoria e pensões. Aí se encaixa a febre do crédito.
É um desbunde de crédito. A tal ponto que o consumo popular, alimentado a crédito, conseguiu se tornar a alavanca desta nova fase de crescimento da economia. No final do ano passado, o total de crédito consignado beirava os R$ 32 bilhões. Em maio deste ano, chegou a R$ 52 bilhões. Metade todos o crédito pessoal concedido hoje pelos bancos é na forma de empréstimo consignado (nota 2). Graças ao crédito consignado, Bolsa Família e aumento do emprego e do salário mínimo, o consumo das famílias avançou 6% nos últimos 12 meses. E graças ao crescimento do mercado interno, além do boom de exportações, foram criados 4,6 milhões de novos empregos com carteira assinada nos quatro anos do primeiro mandato de Lula, contra apenas 800 mil em todos os oito anos do governo FHC (nota 3).
Há uma lógica política no caminho escolhido. O presidente Lula seguiu a rota do menor conflito. Conseguiu algum crescimento com distribuição de renda e ampliação do mercado interno, o sonho dos antigos "economistas do PT", sem hostilizar ninguém, sem enfrentar os bancos. Ao contrário: o crédito ampliou consideravelmente o universo de atuação dos bancos. Deu aos bancos, no princípio contra a vontade deles mesmos, todo um novo contingente de clientes, pessoas pobres que nunca teriam recebido um crédito de banco. Aliando-se estrategicamente com o capital financeiro e taticamente com os trabalhadores organizados, o presidente Lula ocupou todos os espaços e ainda criou uma ambigüidade que desconcertou a oposição. É ou não é genial?
Só que tem dois 'poréns'. O principal é a espoliação disfarçada desses brasileiros pobres que estão pagando juros de 30% a 40% ao ano por empréstimos sem risco nenhum, pois tem garantia total e as prestações são descontadas diretamente do salário ou dos proventos de aposentadoria e pensões do INSS. Hoje, esses brasileiros pobres são caçados nas esquinas, por bancos, financeiras, lojas de departamentos. O mecanismo do credito consignado, nas taxas de juro praticadas de 2,5 a 3% ao mês, é uma das mais pesadas formas de extração da renda dos trabalhadores pobres e aposentados pelo setor bancário (nota 4).
O outro 'porém' só vai aparecer com nitidez quando acabar o segundo mandato, e se não for imediatamente abandonada a atual política macroeconômica, o que implica em romper a aliança estratégica com os bancos. Vamos herdar um país ainda carente de infra-estrutura, um Estado devedor das mais básicas necessidades na educação, saúde, habitação e segurança, porque o grosso do dinheiro arrecadado foi usado para pagar juros da dívida pública e não para construir estradas, portos, escolas, teatros, hospitais ou telecentros.
Só então se perceberá como é efêmero o crescimento do mercado interno puxado a crédito popular, sem mexer em profundidade na estrutura de repartição das rendas nacionais, sem investimentos pesados do Estado e sem que seja eliminado o desemprego estrutural. É um crescimento de pouco fôlego e muito risco. A aliança estratégica tinha que ser com o mercado interno e suas forças produtivas, não com o capital financeiro. O endividamento das famílias aumentou em 120% nos últimos cinco anos. Imaginem o que pode acontecer quando vier o inevitável ciclo de retração econômica?
Notas(1) O Estado de S. Paulo, 05/07/07.(2) Valor Econômico, 02/07/07.(3) Caged/TEM, citados por Revista do Brasil, fevereiro de 2007.(4) O INSS anunciou que vai "limitar" essas taxas a 2,64% ao mês. Além de juro, há taxas de
Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de "A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro" (1996) e "As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998" (2000).

Nenhum comentário: